quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Hierarquia da Igreja em Portugal soube do caso de Ximenes Belo há pelo menos 12 anos, antes da visita de Bento XVI



Suspeitas contra Ximenes Belo chegaram ao Patriarca de Lisboa em 2010 e o caso era comentado na Igreja. Ao fim de um ano de exílio em Portugal, o bispo voltou a trabalhar com crianças em Moçambique.

Tinham passado seis meses da independência de Timor quando, em 2002, a diocese de Díli emitiu um comunicado surpreendente: o Nobel da Paz e administrador apostólico de Díli, Carlos Filipe Ximenes Belo, acabara de renunciar ao cargo e o pedido tinha sido aceite pelo Papa em 24 horas. Motivo: estava cansado, estaria doente e precisava de um “longo período de recuperação” — que viria a fazer em Portugal. Grande parte das pessoas acreditaram nesta versão até esta quarta-feira, quando o jornal holandês The Groene Amsterdammer publicou uma investigação que divulga relatos de homens que terão sido por ele abusados sexualmente quando eram crianças, nas décadas de 80 e 90. Muitos, porém, já sabiam que o cansaço e a doença não eram as verdadeiras razões. O Observador apurou que, em Timor, pelo menos desde 2007, estas suspeitas já eram conhecidas entre as forças de segurança. E, pelo menos desde 2010, a hierarquia da Igreja em Portugal também ficou a saber, pouco antes da visita do Papa Bento XVI.

A notícia do The Groene Amsterdammer veio, ainda assim, apanhar muitos de surpresa. A ministra dos Negócios Estrangeiros de então, Teresa Gouveia, foi uma delas. “Sempre associei a sua vinda [para Portugal] a motivos de saúde”, disse por telefone ao Observador. E foi isso mesmo que foi sendo proclamado nas notícias que iam saindo sobre o bispo. A verdade é que Ximenes Belo deixou o cargo vazio em Díli e, em janeiro de 2003, alojar-se-ia num mosteiro salesiano na zona de Aveiro. Esse “longo período de recuperação” duraria um ano e meio, altura em que decidiu ir em missão para Moçambique e auxiliar um padre local no trabalho com crianças.

“Faço trabalho pastoral ensinando o catecismo a crianças, dando retiros aos jovens. Desci do topo para a base”, disse num evento em Banquecoque para o qual foi convidado enquanto Nobel, numa declaração registada pelo UCA News.

Nessa altura, o bispo ainda não tinha terminado a sua missão em Moçambique, mas anunciou que, mal a acabasse, voltaria a Timor para visitar familiares próximos. No entanto, em 2006, desta vez ao Jornal de Notícias, afirmou que só poderia regressar ao país quando a Santa Sé o permitisse. “Regresso imediatamente, se tiver autorização da Santa Sé e um chamamento dos dois colegas bispos de Timor, de Xanana Gusmão, Mari Alkatiri, Ramos-Horta e dos comandantes da Polícia e do Exército. Estou disponível para ser o reconciliador, dirimir diferenças étnicas, ideológicas, religiosas ou mesmo políticas”, explicou. Mas não há registo de que ali tenha regressado.

“Faço trabalho pastoral ensinando o catecismo a crianças, dando retiros aos jovens. Desci do topo para a base.”

D. Ximenes Belo, uma intervenção em Banquecoque, em 2005

Por esta altura, em 2007, o assunto já circulava em Timor. Ao Observador, um elemento de uma força de segurança portuguesa que esteve em missão naquele país — para formar as polícias locais e manter a ordem pública — conta que já se ouvia falar das histórias e das suspeitas que recaíam sobre o bispo. Nunca tratou de apurar pormenores, mas confirma que, por ali, “falava-se disso”.

E, em 2010, a informação caiu “quase como uma bomba” nas mãos do então cardeal patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, que, em plenos preparativos para a vinda do Papa Bento XVI a Portugal, foi confrontado com uma possível notícia prestes a sair, que traria à baila todas estas suspeitas. Uma fonte contou ao Observador que, graças à sua “capacidade de negociação”, Policarpo conseguiu que nada fosse publicado. Mais: essa informação ficou guardada num círculo restrito e nunca chegou a vir a público.

Antes, aquando da resignação de Ximenes Belo e quando ainda não saberia de nada relacionado com o caso, D. José Policarpo chegou a mostrar-se até publicamente surpreendido, dizendo estranhar o anúncio da resignação e avaliando-o como um “manifesto de intenção”, uma vez que normalmente estes anúncios eram feitos pelo Vaticano. “D. Carlos foi um homem sujeito a ‘stress’ durante muitos anos. Ninguém imagina o que é viver com a tensão que ele viveu”, afirmou então.

E a verdade é que as suspeitas de abuso só foram escritas preto no branco agora, doze anos depois, e num jornal holandês. Nesse ano de 2010, enquanto se preparava a visita do Papa, Ximenes Belo chegou a falar na questão dos abusos sexuais na Igreja, numa altura em que recaíam suspeitas sobre o clero alemão. Estava em Fátima, num encontro com alunos do ensino secundário, quando disse: “Somos pecadores (…) vamos rezar, vamos esforçar-nos para que não aconteça mais”.

A mesma fonte que revelou ao Observador que as suspeitas chegaram ao conhecimento do Patriarca de Lisboa em 2010 conta que, nessa altura, dizia-se na Igreja que Ximenes veio para Portugal para ficar enclausurado num mosteiro o resto da vida. Durante o primeiro ano, quem fala de Ximenes Belo recorda-se de que, de facto, foi assim. O antigo bispo de Díli dedicou-se a escrever um livro da história de Timor, que só sairia anos depois, e era visto como um exilado. Mas já depois da sua missão em Moçambique, os seus passos no exterior, em Portugal, foram aumentando gradualmente.

Ainda em 2005, participou na cerimónia de abertura do ano letivo de uma escola secundária; em 2011, esteve num presépio vivo em Priscos, no concelho de Braga; um ano depois, foi convidado a visitar uma escola em Ferreira do Zêzere para estar com os alunos de Religião e Moral; e, em 2014, o seu nome foi dado a uma rua em Vila Nova de Gaia. Pelo caminho, foi dando palestras e aparecendo em alguns eventos. No ano passado, esteve no velório de Jorge Sampaio, onde agradeceu o contributo do chefe de Estado português para a independência de Timor — cujos 20 anos foi convidado a assinalar, já este ano, pelos salesianos de Lisboa.

"Somos pecadores (...) vamos rezar, vamos esforçar-nos para que não aconteça mais".

D. Ximenes Belo sobre a questão dos abusos sexuais, em 2010

Sem processo crime em Timor e sem divulgação das suspeitas por parte da Igreja, nunca ninguém questionou por que é que o antigo bispo de Díli não tinha voltado a casa, nem sequer tinha quaisquer funções atribuídas pela Igreja, limitando-se a algumas colaborações com os salesianos e a algumas aparições em público — ele que fora Nobel da Paz pelo papel que desempenhou em Timor durante a guerra.

O jornal holandês diz mesmo que Ximenes Belo foi proibido de sair de Portugal sem autorização do Vaticano. Mas, pelo percurso que o antigo bispo fez desde que saiu do seu país, percebe-se que essa autorização só não foi dada precisamente quando o destino era Timor. Desde então, Ximenes Belo viajou por vários outros países.

Primeiras denúncias terão sido feitas em 2002

Agora, são conhecidas, pelo menos, as histórias de Paulo e Roberto – cujas identidades não foram reveladas –, que descreveram, com detalhe, ao jornal holandês o que viveram em Timor, na década de 90. Os dois, agora, adultos contaram que terão sido vítimas de abuso sexual no início da sua adolescência, dentro da residência de Ximenes Belo, situada em Díli, a capital timorense, mas o De Groene avança que, entre todos os contactos feitos durante a investigação jornalística – com membros do governo, políticos, membros de organizações não-governamentais e pessoas relacionadas com a igreja –, mais de metade disse conhecer pessoalmente alegadas vítimas deste crime e outros disseram saber do caso, como o Observador confirmou esta quarta-feira.

Além das duas histórias contadas na primeira pessoa, o jornal revela que terão sido praticados crimes também na década de 80, quando Ximenes Belo estava nos Salesianos de Dom Bosco, em Fatumaca. Aliás, o mesmo jornal adianta que, precisamente em 2002 – ano em que o então bispo anunciou que sairia de Timor –, foi feita uma denúncia de um timorense, que dizia que o seu irmão mais novo teria sido vítima de abuso sexual, e que vários jornalistas terão tentado revelar os casos.

Agora com 42 anos, Paulo contou que o ex-bispo pediu-lhe que fosse a sua casa. “O bispo tirou as minhas calças”, descreveu, acrescentando detalhes de cariz sexual, recordando onde ficava exatamente a casa e descrevendo até a vista. Adormeceu e, quando acordou, na manhã seguinte, terá recebido dinheiro para manter o seu silêncio. Quando saiu, confessa ter pensado: “Não é culpa minha. Ele convidou-me. Ele é o padre. É um bispo. Dá-nos comida e fala bem comigo. Está a aproveitar-se desta situação”. A história de Paulo terminou naquele momento, quando decidiu que não voltaria ao sítio onde vivia o antigo bispo, e, até agora, nunca foi transmitida a ninguém. “Ele sabia que as crianças não tinham dinheiro. Então, ele convidava, tu ias e ele dava algum dinheiro. Mas, enquanto isso acontece, tu és uma vítima. Foi isso que ele fez”, contou ao jornal holandês, acrescentando que os jovens tinham medo de falar sobre o assunto.

A história de Roberto tem contornos diferentes, já que este homem, agora com 45 anos, terá estado várias vezes em casa do vencedor do Prémio Nobel da Paz — onde terá visto outras crianças, que eram levadas até lá — e, antes, num convento na cidade onde vivia, para onde era levado quando o bispo visitava o local.

“O bispo violou-me e abusou sexualmente de mim naquela noite”, depois de uma festa. E aqui a história repetiu-se: saiu depois de Ximenes Belo lhe ter dado dinheiro – que compraria o seu silêncio e dava garantias de que voltaria. Mais tarde, voltaram a encontrar-se várias vezes e existiria uma pessoa que ia buscar Roberto para o levar para o convento, sempre que o bispo visitava a cidade do jovem.

Roberto diz ter tomado consciência do que estava a acontecer ainda antes de se mudar para Díli. “O bispo não estava interessado em mim, isto era apenas sobre ele próprio. Para mim, era sobre dinheiro. Dinheiro de que nós precisávamos muito”, recordou o, na altura, adolescente, cuja família tinha perdido muito durante a ocupação da Indonésia em Timor. Já em Díli, os abusos sexuais terão continuado na residência oficial de Ximenes Belo, que foi nomeado bispo em 1988.

“O bispo violou-me e abusou sexualmente de mim naquela noite”

Roberto, uma das alegadas vítimas do bispo, no relato que fez a um jornal holandês

Todos estes episódios terão acontecido antes de Ximenes Belo ter recebido o Prémio Nobel da Paz, em 1996, juntamente com José Ramos-Horta. E, de acordo com o jornal holandês, terão continuado depois do referendo de 99, que deu a independência a Timor. Naquela altura, o então bispo terá saído do país, depois de as tropas da Indonésia incendiarem a sua residência, tendo regressado no mesmo ano.

Perante tudo isto, a Igreja em Portugal mantém o silêncio. O Observador contactou o Patriarcado de Lisboa para saber do nível de conhecimento que a instituição tinha do caso. A mesma tentativa de contacto foi feita com os Salesianos de Mogofores e com a Nunciatura Apostólica em Portugal, mas, até ao momento, sem qualquer resposta. O telemóvel de Ximenes Belo esteve sempre desligado durante a tarde e início da noite desta quarta-feira.

Já a Nunciatura em Díli disse à Agência Lusa que as suspeitas sobre o ex-administrador apostólico de Díli estão com os órgãos competentes da Santa Sé, sem especificar desde quando. “Pessoalmente não posso nem confirmar nem desmentir porque é uma questão de seriedade da minha parte, visto a competência ser dos meus superiores na Santa Sé”, disse Marco Sprizzi, representante máximo do Papa e do Vaticano em Timor-Leste.

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