segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Até sempre meu amor, até sempre!

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Nomeei-te rainha. 
Há maiores do que tu, maiores. 
Há mais puras do que tu, mais puras. 
Há mais belas do que tu, há mais belas. 
Mas tu és a rainha. - Pablo Neruda
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Querida ferik doben,

Faz hoje sete dias que te foste embora, depois de uma batalha feroz contra a morte, eu testemunhei de mãos dadas a ti  a  tua luta, e para ti, aqui vai uma grande vénia por nunca teres desistido, mas " perdeste" a disputa às 4:20 da madrugada de segunda-feira, de mãos dadas comigo.

Morreres nas minhas mãos foi o último presente que me deste, de acordo com o padre australiano, teu grande amigo, assim vou guardar esta memória dentro do meu coração.

Eu sou a tua neta mais velha e provavelmente a que mais " luta" te deu e te tratava de igual para igual, tu sabias que eu nunca olhei para ti como uma velha, eu não sou burra, eu sabia que por trás daquele cabelinho branco, estava uma mulher forte, determinada e " sacaninha" por vezes, vá...Tu sabes que sim...

Sou das poucas pessoas neste planeta que te tratava por TU, nem a tua filha nem os teus netos se atrevem a faze-lo, só eu. Depois de o meu avô morrer, eu fui a única que te beijava na boca, adorava faze-lo, tu também gostavas, fingias que não gostavas, limpavas a boca, cuspias e insultavas-me a valer - eu adorava ver a tua reação - e chamavas o meu marido para fazer queixa de mim. Quando te ia visitar em casa de uma tia, mal ouvias a minha voz, punhas logo a mão a tapar-te a tua boquinha , eu fingia que não via mas pensava cá para mim, estás armada em esperta velha, eu apanho-te, não vais passar o dia de boca tapada, apanhava-te distraída e zás, um grande beijo na tua boca!" ZIZI, Ó BULAK DUNI, POÇAS PÁ!" Estou-me a rir sozinha avó...

E quando eu te beliscava numa parte do teu corpo menos apropriada, livra! Aí tu insultavas-me bem, mas eu fazia tudo para tu me insultares em Tétum, era música para os meus ouvidos, ganhava o dia. 

Estou-me a lembrar agora de uma vez que te fui buscar à paragem do autocarro e lá saíste tu toda giraça e eu dei-te a mão para andarmos e tu viraste para mim toda zangada - passavas a vida a ralhar comigo, livra!- " ZIZI, eu não sou velha, daqui a bocado as pessoas vão pensar que somos GAYS", aiii avó, tu tinhas 80 e poucos anos, eu nos meus vintes, e tu estavas preocupada de as pessoas pensarem que éramos GAY??? Como disse à minha mãe, tu não eras normal também, não eras não! Por isso, foste e serás sempre especial nos nossos corações, tu não morres, deixaste connosco tantas lembranças - boas e menos boas também, a verdade tem de ser dita velha - que durante o tempo que vivermos sem ti, tu viverás connosco através das memórias que todos nós colecionamos.

Não te tratava como se trata a uma avó, eu tal como tu, tenho mau feitio, não vergo, sou teimosa, orgulhosa, arrogante e não me calo, " lutávamos" uma com a outra, de igual para igual, :), como eu fazia com o meu pai...O padre teu amigo foi-me pedir uma coisa depois do funeral, e eu disse NÃO, ele insistiu e disse para eu o fazer por ele, eu disse NÃO, ele olhou para mim e disse, " És teimosa como a tua avó."Pois é...Não foi maldade minha querida, foi uma questão de dignidade...Nem mais, nem menos. Tu sabes...

O nosso amor foi complicado - houve muitos INTRUSOS - e tu eras uma avó muito CIUMENTA, e quando tinhas ciúmes da tua Zizi, tu ficavas má, fazias-me maldades, mas nunca percebeste, que poucos concorriam lado a lado ao amor que eu sinto por ti. A tua única concorrente é a minha tia Né, irmã do meu pai, só por ela, eu sinto o mesmo tipo de amor que sinto por ti. Só por ela faria o que fiz por ti...Ironicamente, desta minha tia, nunca sentiste ciúmes, pelo contrario, quando falavam ao telefone, só falavam mal de mim, o teu problema GRANDE era outra pessoa..." Poças pá, tu és a MINHA NETA." Cala-te boca...Devias mas era de ter juízo, sua ciumenta!

Com todos os meus defeitos, eu sei que vocês as duas gostam de mim, faça o que eu fizer, diga o que eu disser, os vossos braços estão sempre abertos para a " bulak". A minha tia também vai de tu, e todo o resto. Quando tu foste avó, eu falei com a Né e a minha tia gostava muito da Dona Maria, sempre te defendeu quando eu te criticava e achava-te muita piada, principalmente aos teus insultos - eu não saio às paredes - imagina tu avó que eu estava a contar-lhe o que aconteceu a chorar, a mulher começa a ralhar comigo, " Olha Zizi, não foi só a Dona Maria que olhou por ti quando eras pequena, eu também, dei-te sossoro, lavei-te e tomava conta de ti, portanto tens que fazer por mim o mesmo que fizeste a tua avó, promete já" e ainda me pediu uns trocos para ir ao casino, só me sai isto na rifa. Lá eu disse uma asneira daquelas, mas tive de prometer e chamei-lhe "chula" a qual orgulhosamente respondeu, "sou mesmo", não ganho. Eu só trato assim a quem eu gosto de verdade, aos outros, eu trato educadamente...Só a vocês as duas eu ofereci o melhor e também o pior de mim, gostar de mim não é fácil e confesso que, apenas gosta de mim, quem eu deixo e quero, o resto é mesmo isso, resto, eu dou apenas o pior de mim e é mau, muito mau! Eu amo-te avó, à minha maneira louca, mas amo-te desde que nasci até ao momento em que te vi dares o último suspiro, e vou-te amar para o resto da minha vida!

Foste mesmo burra, desculpa lá o nome, mas já sabes o que a casa gasta, mas, morreste a saber disso, eu provei-te até ao último minuto da tua vida, que te amava, sem reservas, sem medos e não deixei desta vez, ninguém se meter entre tu e eu! Ao morreres nas minhas mãos, foi o teu ajuste de contas final, eu conheço-te lindinha, tu és terrível. O nosso amor foi conturbado (no mínimo) mas foi até que a morte nos separou e foi mais forte do que qualquer intruso ou maldade...Obrigada, minha querida!

Quando te vi tão doente, o meu coração despedaçou-se mas, eu pensei, não, eu não te vou tratar como uma moribunda, não vou não, vais morrer com a mesma DIGNIDADE com que viveste. Vou-te tratar da mesma forma que sempre te tratei, e fiz exatamente isso até ires para as mãos de Deus, beijei-te na boca forte e feio - tu ainda limpaste uma vez, nos outros dias apertaste os lábios - brinquei contigo, gritei contigo, disse asneiras, zanguei-me contigo, fiz-te rir, só fiz disparates, as enfermeiras chamavam-me a " naughty girl" e " troublemaker", mas gostavam de mim. No dia de São Valentim uma das tuas filhas disse-me a rir, " Zizi, hoje é dia de São Valentim, deseja bom São Valentim à avó." Claro que eu sabia o que a tia estava a dizer, vai " provocar" a avó e dá-lhe um beijo na boca, já te tinha dado vários nesse dia mas, solenemente levantei-me do chão onde me sentava para ficar juntinha a ti, a cama era baixa, e deixei a tua mão e disse,  Happy Valentines Day linda, e zás, um grande beijo na tua boca, todos riram, somos famosas nesta brincadeira, e tu apertaste os teus lábios, outro motivo de risada. Tu não vergaste, nem eu, minha querida! 
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Gostava muito de te pentear o cabelo desde pequenina, então vi-te despenteada e disse, então velha, estás toda despenteada, isto não pode ser assim, vou-te pentear. Tu disseste logo, " Aiiiii, não precisa." E eu que sou teimosa disse, PRECISA, PRECISA, ora esta! Tu conformada lá me deixaste pentear - obrigada linda- tinhas uns nozinhos mais difíceis atrás e eu aleijei-te um bocadinho e tu, alarmista como sempre gritaste," Aiiiiiiiiiiii", e eu perguntei-te, queres ficar gira ou não e riste...Não há como não te adorar, no teu leito da morte, ainda nos deste razões para colecionarmos mais recordações e rirmos das aventuras que vivemos contigo. A última vez que te penteei foram poucas horas antes de Deus te levar, eu fiquei sozinha contigo e decidi pentear-te enquanto falava contigo, fui gentil desta vez, porque já não era tempo para maluqueiras, a tua amiga enfermeira, " Isaura", entrou no teu quarto e abanou a cabeça a rir, e disse, " that's nice" e saiu a chorar, ela gostava mesmo de ti, mas também lhe fizeste das boas, que coisa, avó!

Eu sabia todos os sinais da morte, tornei-me numa " perita", sabia exatamente o que me esperava, mas até domingo, os sinais de morte iminente não estavam lá, até às cinco horas da tarde, quando o primeiro apareceu, eu sabia que não me restava muito mais tempo contigo e tive de fazer das tripas coração para continuar forte ao teu lado, tu precisavas de mim, não era tempo para pensar na minha pessoa...

Todos disseram que eu fui muito corajosa por tudo o que fiz por ti. MENTIRA AVÓ, MENTIRA! Eu fingi que era corajosa, o meu coração estava despedaçado mas, eu tinha uma promessa a cumprir! Quando me pediste aquilo, eu pensei, lá está a velha a meter-me em sarilhos... Tu eras boa nisto, mas tu sabias que apesar da minha maluqueira, eu te ia honrar o pedido, por isso pediste a mim, não é verdade, sua malandra? Meter-me em encrencas foi sempre o teu forte, tu sabias que eu chegava para qualquer bronca, não tenho medo de nada nem de ninguém, a quem é que eu saio? ;)

Nessa noite que me fizeste o que eu acredito que foi o teu último pedido, tu fizeste e disseste muitas coisas que me fizeram confusão. Dei-te o leite, e tu sempre a perguntar, " já acabou?", " já acabou?", chatinha... Depois eu fui guardar o copo e fui-me sentar para te chatear outra vez, e tu fizeste algo que me assustou, disseste, " anda cá, dá-me um beijo", livraaaaa avó, vindo de ti, eu fiquei assustadíssima, nunca me pediste um beijo, fugias dos meus beijos como o diabo da cruz, eu dei-te a cara e tu deste-me um beijo e disseste, " Obrigada, Deus te abençoe, a ti e a todos." Dentro do meu coração eu sabia o que estavas a fazer - despedires de mim. Eu abracei-te e disse, NÃO AVÓ! Tu não tens nada para me agradecer, quem te tem de agradecer muito, sou eu, e pára já com esta treta! Fiquei desarmada e tu ainda disseste, " agora a avó vai dormir" e olhaste fixamente para mim, eu olhei para ti, tinha o coração partido mas armei-me em forte e perguntei a brincar que estava zangada, O QUÊ AVÓ? " A avó vai dormir", disseste. Nunca mais falaste como na quarta-feira, nunca mais...Na quinta-feira cheguei e tu disseste para mim com aquele ar que nem eu tenho coragem de te contradizer, " Fala pouco...". Fiquei triste e totalmente desarmada...Nunca mais vai ser como antes, nunca mais, pensei...E não foi.

Quando Deus te levou eu senti-me traída, sentei-me ao pé de ti a fazer-te festinhas, mas estava zangada, zangada mesmo! Quando te disse adeus beijei-te os pés, a boca e os teus bracinhos, para mim, o assunto estava encerrado, ali, naquele quarto, eu decidi que não ia ao teu funeral. Para mim, acabou! Eu deixei naquele quarto uma lutadora, uma mulher cheia de coragem, eu não queria-te ver dentro de um caixão, NÃO QUERIA! A cobardia tomou conta de mim, logo que te foste embora...Comuniquei ao meu marido que não ia ao teu funeral, logo que cheguei a casa, ele não desistiu e não admitiu que eu te fizesse isso, ele adorava-te e tu a ele. Eu disse-lhe, eu faço o que eu quero, mas ele lembrou-me que a promessa ainda não estava cumprida, fui.

À entrada da igreja, parecia que estava a sonhar, não acreditava no que me estava a acontecer, queria gritar, chorar, mas eu não te queria desapontar na tua despedida e o meu orgulho não me permitiu fazer isso, não, eu não choro a gritar em frente de estranhos. Mas...Ainda preguei uma partidinha às senhoras da Casa Funerária, ao ter de assinar o livrinho de presenças eu escrevi o meu nome assim avó, Zizi Bulak- Hau Hadomi Ó! A senhora disse, " nome comprido", eu olhei para o Céu e pisquei-te o olho, sorri para a senhora e andei...

Foi uma cerimónia bonita, o teu amigo padre ainda nos fez rir com as tuas " maldades" e...O teu neto mais velho fez-me dar uma gargalhada quando disse no seu discurso para ti, " To say that avó was a stubborn woman is an understatement." VERDADE! Tu eras teimosa para caramba! Só fazias o querias, por isso eu te admirava tanto.

Escoltei-te sozinha no carro funerário, foi a última homenagem que te prestei e o completar da promessa que te fiz, tu e eu sozinhas naquele carro, naquela viagem de meia hora, tantas coisas vieram ao meu pensamento e foi a tua generosidade como mãe, avó e bisavó que me vieram sempre à memória, do pouco que tinhas, deste, deste, deste, deste e deste e deste...

Eu vivi contigo desde que nasci, a minha mãe contou-me ontem que quando eu tinha quase três anos, a minha mãe decidiu que eu ia viver com eles no Farol para sempre e tontinha, vivias em Taibessi, tu choraste que nem uma perdida quando a minha mãe foi-me buscar e ao meu irmão Artur, e eu cantei-te esta música do Roberto Carlos," Não precisa chorar, é teu, somente teu o meu coração." Devias de ter acreditado, porque uma criança não mente, tinhas evitado a ti e a mim tantas broncas e metemo-nos em cada uma, livraaaaa avó...

Eu te amo, avó! Vou-te deixar agora descansar em paz, não quero ser egoísta, já fizeste tantoooo por todos nós, TANTO!

Obrigada por tudo ferik doben, que todos os que aqui ficamos, saibamos honrar a tua memória e a tua grandiosidade, eu cá vou honrar a tua maldade, insultos e tudo, sou boa nisso, tu sabes a minha fama.:)

Nenhum de nós te chega aos calcanhares velha, nenhum...Nenhum!

Até sempre meu amor, até sempre!

Zizi Bulak - Hau Hadomi Ó!
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