sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Queriam um museu da escravatura? Está no Rossio



Parece que os três mil timorenses que neste Verão saíram da sua terra e dos quais muitos agora habitam a céu aberto no Rossio, em Lisboa, são timorenses de origem mas portugueses de nacio­nalidade: tão portugueses quanto eu ou qualquer um dos 12 elementos da Selecção de futebol de Israel ou os restantes milhares de judeus de suposta origem sefardita e pretensamente descendentes de antepassados expulsos por D. Manuel I, todos eles também detentores de passaporte e nacionalidade portuguesa. 

Nada tenho contra a integração de nacionais de outras origens na cidadania portuguesa — nem razões ideológicas nem objectivas —, num país que não faz filhos e que envelhece todos os anos, mas há um limite a partir do qual a nacionalidade deixa de fazer sentido e a própria ideia de nação se transforma num emaranhado de leis idiotas ou de conveniência, a coberto das quais o nome Portugal não passa de uma plataforma de interesses imobiliários, fiscais, empresariais, emigratórios, sem ponta de dignidade. Duvido que haja outro país no mundo onde seja tão fácil e tão venal a obtenção da nacionalidade.

Se fica assim explicado como é que três mil timorenses puderam entrar tão facilmente em Portugal e no espaço Schengen, resta explicar como vieram, ao que vieram e porque vieram. Vieram, primeiro que tudo, porque Timor-Leste, apesar do petróleo e de todas as ajudas, nossas e de outros, continua condenado à sua condição crónica de “triste trópico”: tem um milhão de habitantes cujo único futuro é fugir. Vieram pagando — ou, melhor, pedindo emprestado aos angariadores — 2, 3 ou 4 mil dólares pela viagem, os quais terão de devolver, com juros e com o salário do seu trabalho futuro, durante os próximos anos: era isto mesmo que se fazia nas roças de cacau e café de São Tomé e Príncipe com os trabalhadores emigrados de Angola, até meados do século passado, e a que os historiadores chamaram, e bem, trabalho escravo. Então como agora, estes “trabalhadores” jamais terão condições financeiras para se libertarem dos seus angariadores e regressarem à sua terra, pondo fim aos “contratos”. Então como agora, estes “trabalhadores” — timorenses ou os outros “asiáticos” de Alqueva e de Odemira — vêm trabalhar na agricultura superintensiva, que exige também uma mão-de-obra intensiva ou escrava: no cacau antes; no olival, amendoal ou estufas hoje.

Mas há diferenças, apesar de tudo. Lá e então, em São Tomé ou nas fazendas do sul de Angola, os “trabalhadores” viviam com as famílias em cubatas ou construções individuais na sanzala; agora vivem sem a família, amontoados aos cinco e seis em contentores de aço ou quartos pardacentos. Então dispunham de um hospital em cada roça, que eram dos melhores de África no seu tempo; agora estão por conta própria e, se adoecem, não recebem. Lá eram “contratados” pelas fazendas ou roças onde trabalhavam; aqui são sub-contratados a empresas que não existem nem no vão de escada onde consta a sua sede. Lá e então eram angariados na origem por engajadores portugueses e embarcados em navios sobre os quais, apesar de tudo, as autoridades exerciam alguma vigilância, nem que fosse para enganar inglês; agora são angariados por engajadores indianos e paquistaneses que os contratam e espalham pelo país sem o mínimo controlo das autoridades portuguesas, confiscando-lhes o passaporte e a maior parte do salário na origem, carregando-os e descarregando-os como gado pelos locais de trabalho, ameaçando-os em caso de desobediência, dispondo deles e das suas vidas como coisa sua. Nas barbas e à vista de um suposto Estado de Direito Social chamado Portugal.

E isto é assim porque o tipo de agricultura que privilegiamos e para o qual destinamos mais água, mais fundos europeus e melhores terras só é possível de fazer com trabalhadores saídos dos confins da miséria asiática e dispostos a aceitar aquilo que nenhum trabalhador agrícola português aceita desde há muito. Para haver trabalho escravo são precisas três coisas: que haja escravos disponíveis, que haja empresários que não se importem de os contratar e que haja um Governo que feche os olhos a tudo e que conte com a indiferença da opinião pública perante o “superior interesse nacional”. Odemira — lembram-se? — era um caso resolvido. Pois, vão lá ver o que mudou...

O mais impressionante de tudo para mim (e já escrevi sobre isto algumas vezes) é a imensa conivência de toda a esquerda, sindical e política, sobre isto. Porque se há causa que, antes de qualquer outra, deveria mobilizar e indignar a esquerda é esta. Antes de qualquer manifestação, qualquer greve, qualquer protesto ou reivindicação em favor dos direitos dos trabalhadores portugueses, por mais justificados que sejam, deveria estar a mobilização em massa contra a escravização de trabalhadores estrangeiros em Portugal. Mas foi assim que foi erguida a Expo-98 e construída a Ponte Vasco da Gama, é assim que se faz a “agricultura moderna”, e ninguém viu um protesto das centrais sindicais ou dos partidos de esquerda, como se isto fosse uma ficção passada algures num país do Terceiro Mundo, no Catar do Mundial de Futebol e não no país onde vivemos.

Para haver trabalho escravo são precisas três coisas: que haja escravos disponíveis, que haja empresários que não se importem de os contratar e que haja um Governo que feche os olhos a tudo e que conte com a indiferença da opinião pública

E aqui, onde algumas boas consciên­cias vingam o passado dos seus ancestrais aliviando os pecados coloniais no monumento às Descobertas ou na estátua do padre Vieira, ou outros reclamam um urgente museu de homenagem às vítimas da escravidão, tudo pode ser resolvido agora numa praça perto de si: no Rossio, em Lisboa. Aí encontrarão um museu da escravatura. Não morto, mas vivo. Três mil timorenses, contratados como semies­cravos para os campos agrícolas de Alqueva, mas pelos vistos chegados tarde demais para os trabalhos de Verão e que, sem tecto nem trabalho, dormem ao relento, sob a protecção de D. Pedro IV, na praça principal da outrora capital do Império. Que bela parábola da História! Que retrato eloquente do sucesso de toda uma política — da nacionalidade, da imigração, da agricultura, da legislação laboral, da protecção social, das causas de esquerda!

2 Há um provérbio moçambicano que diz que as palavras usadas demais transformam-se em baba na boca. Não sei quem foi que descobriu que os políticos devem dizer alguma coisa todos os dias, sob pena de desaparecerem nas sondagens e depois nos votos. Talvez um spin doctor para mostrar serviço ou as televisões para mostrar “informação”. Mas, entre nós, espanta-me que “Marcelo de manhã à noite, 365 dias por ano”, ainda não tenha ensinado aos outros o valor da contenção e o quanto, nesta cacofonia total em que vivemos, é avisado abrir a boca apenas quando se tem alguma coisa de importante ou de diferente para dizer.

Que Luís Montenegro discurse no encerramento das jornadas parlamentares do PSD é normal e de tradição. Mas que não tenha nada para dizer e mesmo assim o diga é caminho infalível para asneirar. Será possível que ele não perceba que o mesmo PSD que passou todos estes anos a louvar a coragem de Passos Coelho quando levou a austeridade “ainda além da troika” e a malhar no “despesismo” da governação Sócrates, que “nos levou à ruína” com o endividamento público, vir agora, pela voz do seu presidente, reclamar contra as “contas certas” e a redução da dívida transmite uma ideia de simples oportunismo e populismo, de navegação ao sabor do vento, sem memória nem coerência? Montenegro devia meditar no exemplo da PM inglesa, Liz Truss, esse saco vazio ao vento, pura ambição despida de qualquer vestígio de carácter, capaz de mudar radicalmente de ideias e de programa político de uma semana para a outra e de sujeitar-se à humilhação pública mais extrema, enxovalhando o seu Governo e o seu partido, expondo o seu país ao ridículo, apenas para continuar a ensaiar uns passinhos de dança no poder. E, como se viu, nem valeu a pena.

Eu sei que não é fácil fazer oposição a um Governo que apresenta um Orçamento que é seguramente igual àquele que a oposição gostaria de apresentar se fosse Governo... Mas, como se costuma dizer, há mais vida além do Orçamento, e o que não faltam são outras causas e outras matérias importantes e urgentes onde fazer oposição. Se não sabem quais, informem-se.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

Foto, Facebook

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